segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Casamentos de sangue




Por ciúmes, mata-se. Por razões de coração, baleiam-se os valores morais e deixam-se filhos sem colo paterno. O que o casamento une, o crime pode separar. Duas histórias de homicídios passionais que obrigaram avós a assumirem o papel tardio de pais dos netos



Texto de Liliana Garcia

Fotografias de Humberto Almendra


Duplo homicídio. Quatro crianças a escurecerem os sonhos, a tiritarem, sob os cobertores. São suficientes, os cobertores, mas a noite tornou-se polar, sem que eles percebessem porquê. A palidez da lua, a orfandade à espreita.


Diz-se crime passional e não se percebe. Não se percebe nunca. Passional. Espanta-se, da lembrança, o «Pasión» do Rodrigo Leão. Procura-se o dicionário, que é objecto de arrumar ideias. Confirma-se que passional é relativo a paixão, susceptível de paixão.


E que é isso de paixão? Têm-se tantas dúvidas, quando se é adulto. Ser criança é ter as dúvidas todas e pensar que os outros, os adultos, as darão, infalíveis. E que bastará a firmeza na voz e um afago na cabeça para espantar as dúvidas, como se estas fossem corvos no trigal.


A paixão pode atear fogo entre duas almas e levar um corpo a arredondar a maternidade. A paixão pode parir quatro filhos. O amor os educará. Mas, a paixão também pode ser a arma de fogo que arranca o sangue das veias e o torna visível. Letalmente visível.


O dicionário dá pistas, não respostas firmes: «do Lat. passione, sofrimento. s. f., sentimento excessivo; amor ardente; afecto violento; entusiasmo; cólera; grande mágoa; vício dominador; alucinação; sofrimento intenso e prolongado; parcialidade; o martírio de Cristo ou dos Santos martirizados; parte do Evangelho em que se narra a Paixão de Cristo; colorido, expressão viva, em literatura».


Retém-se a ideia de afecto violento. É frequente a união destas duas palavras. As nódoas negras, a aliança reluzente deste enlace. Em nome da paixão, é-se imoral. É-se criminoso. Depois, pode ser que venha o arrependimento.


Ele entrou na madrugada, de arma em punho. E foi à queima-roupa. Primeiro rebentou a fechadura da porta de casa com uma caçadeira de canos cerrados. Seguiram-se mais três tiros. Atingiu a cabeça da ex-mulher, o braço e o peito do actual companheiro dela. Duas mortes imediatas. Maria de Fátima Pereira, de 31 anos, natural de Moreira, concelho de Nelas; e José Alves Martins, de 48 anos, divorciado, natural de Chaves.


Quatro menores, órfãos de mãe. O mais velho com dez anos, duas gémeas, de seis anos, e o mais pequeno de ano e meio. Quatro seres sem colo quente. Pegou nos quatro filhos e levou-os a casa dos sogros. Deixou-lhes 50 euros e quatro vidas por criar. Depois entregou-se à GNR.


José Luís Pais Ferreira, de 37 anos, estava divorciado, há três semanas, de Maria de Fátima. Mesmo tendo um envolvimento com uma irlandesa, José não suportou a ideia de a ex-mulher não ser propriedade dele ad eternum. Não aguentou saber que, debaixo do tecto da vivenda que tinham construído há nove anos, Fátima começava a encontrar afecto no abraço de outro homem. O desnorteio do ciúme. A condenação à pena máxima: 25 anos de prisão.


«Maria de Fátima foi a maior alegria que Deus me deu». Com dois filhos rapazes, uma menina era a cereja no cume da família Pereira. E foi, durante 31 anos. Até ao dia 30 de Outubro de 2008. «Ele comeu-ma, mas deixou um pedaço dela, que são os meus netos», solta Rosa Pereira, mãe de Fátima. «Sem os meus netos, já não vivia».


O luto não larga Rosa. Calças pretas, camisa preta, bata preta, chapéu preto. Por detrás dos óculos, o olhar triste como a noite. Como aquela noite. Estremunhados pelo sono, Rosa e Joaquim não perceberam, de imediato, a dimensão da mudança que se impunha na vida deles. Estavam ainda na madrugada da reviravolta. «Ele entregou os meninos, deu 50 euros e disse que se ia entregar à polícia». Nesse momento, o ânimo materno tropeçou no nó da garganta: «O meu coração estoirou». Os meninos iam «geladinhos, a tremer». Assim, que conseguiu acalmar as crianças, Rosa ligou a um irmão, para ouvir o que não queria. «Ó mana, não há nada a fazer. A Fátima acabou».


Dentro de Rosa formou-se uma barragem. As comportas abriram no início da manhã. «Estive até às seis da manhã sem chorar. Depois não aguentei mais e chorei, chorei». No pensamento de Rosa adivinha-se a frase que a filha lhe atirou, para justificar o novo amor que pôs em casa: «Ó mãe, deixe-me ser feliz, que nunca fui feliz!».


No diário, que a Polícia Judiciária encontrou, Maria de Fátima ousava escrever o que o medo a inibia de verbalizar. Os maus-tratos físicos e psicológicos acumularam-se ao longo de 15 anos de casamento. Fátima e José Luís conheceram-se num bailarico de aldeia. Aos 16 anos, a adolescente sentiu ter encontrado um amor para toda a vida. Fátima, como todos os enamorados, acreditava no “e viveram felizes para sempre”. A mãe gostava de ver a filha com outro género de rapaz, mas não se opôs ao desejo filial. «Como o meu pai também não queria que eu casasse com o meu marido, sei o que é lutar para ficar com o homem que se ama».


Depois de casados, José e Maria de Fátima procuraram sustento em Inglaterra. Logo aí, começaram os maus-tratos. «As patroas perguntavam-lhe quem lhe tinha feito as nódoas negras e ela dizia que tinham sido assaltantes». Depois de uma passagem pela Alemanha, país onde Fátima engravidou pela primeira vez, deu-se o regresso a Portugal. Os sogros arranjaram trabalho para o genro, nas proximidades de Moreira, a aldeia do concelho de Nelas onde viviam. José era operador de máquinas de terraplanagem. E não permitiu que Fátima fosse alguém no mercado de trabalho. A mulher ficava em casa, em redor dos filhos.


José entendia que a sogra dava maus conselhos à esposa. Uma altura, apareceu em casa dos sogros sem a mulher. Rosa perguntou-lhe por Fátima. Recebeu uma resposta retorcida. «Parecia o diabo». A sogra disse-lhe que se ele e a filha não se entendiam, mais valia ir cada um para o seu canto. Desatou a pontapear Rosa. «Deixou-me toda rota».


Os pontapés de José foram muito pouco, comparado com a dor de perder uma filha, com a angústia de ganhar quatro novos filhos. Os 53 anos de Rosa e os 56 de Joaquim fazem-nos pensar no futuro dos netos. O que Rosa mais quer é conseguir «criá-los e casá-los com uma companhia que os estime». E apurar dinheiro para poder pagar a carta de condução aos quatro e já agora «fazer o enxoval para as pequeninas».


Rosa e Joaquim vêem-se a fazer aos netos o que não fizeram aos três filhos, que os tempos eram outros, mais difíceis e miseráveis. Mas estes tempos também não se afiguram risonhos. Rosa desempregou-se para cuidar das crianças; Joaquim, pedreiro, está a receber subsídio de desemprego. O casal que, para criar os netos, recebe 250 euros da Segurança Social, só pede saúde para poder dar chão e asas às crianças. «Nem que queiramos chorar, não podemos porque eles querem brincadeira». Querem folia, agora. Porque nos primeiros três, quatro meses, após a morte de Fátima, os avós andavam sempre com os netos nas urgências. Os pequenos passavam o tempo «com febre, a vomitar, por causa da ansiedade». Os quatro têm acompanhamento psicológico.


Há noites em que as gémeas pedem à avó para rezarem o terço, «pela alma da mãe, que está no céu, e para que o pai cumpra pelo que fez». Há noites em que o neto mais pequenino se vira para Rosa e diz que a estrela que desponta é a mamã. São noites em que quatro crianças sabem que podem contar com as mãos do amor para aconchegarem os cobertores.


Há colos de avós que viraram regaços maternos, à força da bala. O poder paternal entregue a avós que, de um dia para o outro, se transformam em mães a tempo inteiro. Aconteceu isso a Rosa, tal como aconteceu a Lucília.


Os quatro anos de E. chegaram a casa muito chorosos. Um menino tinha-lhe atirado crueldade dizendo que o pai dela era mau. Tudo o que a pequena E. queria era esquecer. Tudo o que a avó materna queria era voltar atrás e saber o que soube no dia 14 de Julho de 2007. «Não tenho muito, mas dava quase tudo do que tenho para a minha menina não ter isso dentro dela». Dentro de E. há imagens de violência extrema. «Vozinha, o papá deu muito tautau à mamã, pegou-lhe pelos cabelos e bateu-lhe com a cabeça contra a parede. E depois o papá atirou a mamã pela varanda».


As rugas vincadas de Lucília Carvalhas contam que a sua menina tem «uma mágoa muito grande»: «Não pode ouvir a palavra pai, que é como um tiro no coração». No Dia do Pai, na escola, E. teve uma crise. Pegava no papel para desenhar e as mãos só inclinavam para lápis de cor escura. A psicóloga que acompanha a menina aconselhou os avós a arranjarem-lhe um cão, como animal de companhia. Eles assim fizeram. Mas, os pesadelos não abandonaram as noites da criança que, aos dois anos e meio, perdeu o calor materno.


Paulo Silva, pai de E., está a cumprir 20 anos e quatro meses de prisão, pelo homicídio da mulher. O funeral de Carla, de 30 anos, foi no dia em que o casal completava oito anos de casamento.


A mãe da vítima, Lucília, sublinha que Paulo «não matou por ciúmes, nem por amor, mas para trocar de mulher. E ele pensava que matando-a ficava com a casa paga». O único ciúme que Paulo sentiria era do facto de Carla ter um ordenado mais elevado que o dele. É nisso que acredita a sogra.


Paulo e Carla trabalhavam na PSA Peugeot Citröen de Mangualde. Ela era funcionária dos escritórios da empresa; ele operário. Durante a investigação policial, foi encontrada, na secretária do local de trabalho de Carla, uma carta onde esta pedia para não chorarem por ela, caso desaparecesse. «Dizia que preferia morrer a ver alguém da família morrer», conta a mãe.


Até à data do crime, Lucília nunca encontrava grandes nódoas na camisa do genro: «Ele portou-se sempre às mil maravilhas connosco, nunca teve uma má palavra, nunca me fez queixas da Carla». «Só dizia que era exagerada na limpeza e no cuidar da filha». Nos últimos tempos, Lucília começou a estranhar o emagrecimento da filha e «a tristeza na carinha dela».


O casal já tinha tido problemas, no início do casamento, na altura em que Carla descobriu, no telemóvel do marido, mensagens de uma suposta amante. Quando confrontou o marido com a descoberta, ele reagiu mal. «Disse-lhe para ela ir para casa dos pais, para dar um tempo». Carla decidiu voltar para o marido depois de pedir conselho à mãe. Lucília só lhe disse: «Teu coração é teu mestre. Vai, mas enterra o que aconteceu, para teres paz».


No dia 12 de Julho de 2007, por volta das 17h30, Carla passou por casa da mãe para ir buscar a filhota. Dois dias depois, o corpo de Carla é encontrado, por emigrantes de Leste, na lagoa de uma pedreira da Cunha Baixa. Paulo deu alerta do desaparecimento da mulher no dia 13. E dirigiu-se, várias vezes, a casa dos sogros a perguntar-lhes se sabiam alguma coisa da filha. «Eu aqui deitada, no sofá da cozinha, e ele vinha cá constantemente perguntar se ela ainda não tinha ligado a dar notícias. Até ligou aos colegas de trabalho a perguntar pela mulher!», recorda Lucília.

O poder de dissimulação de Paulo fê-lo dizer que os dois tinham discutido e que ela tinha ido para a cama, ficando ele com a filha, na sala, a ver desenhos animados. Como teria visto televisão noite dentro, para não acordar Carla, Paulo acabaria por dormir com a filha. De manhã, nem mulher, nem Peugeot 206. A sogra estranhou a história, que a constância da filha não era condizente com uma fuga de casa, sem filha e sem explicações. Paulo chegou a dizer que a mulher teria saído de casa, pelas mãos de um inédito sonambulismo.


Quando a Judiciária encontrou o carro e o corpo de Carla, a voz do povo aumentou o volume e propagou o envolvimento de Paulo com a funcionária do café onde ele passava a vida. A polícia não fez ouvidos moucos às suspeitas e às provas que encontrou. Paulo ficou em prisão preventiva. E mesmo, no estabelecimento prisional, enviou cartas à alegada amante. Num dos manuscritos referia que tinha morto a mulher por ciúmes e que daí a «seis ou sete anos» estaria livre e poderiam então ser felizes.


Só com a detenção de Paulo é que Lucília começou a entender a reacção da neta, nos dias após o desaparecimento da mãe. Quando, o pai chegou a casa dos sogros para comunicar o sumiço da mulher, E. foi a correr para o colo da avó e não disse «nadinha» durante três dias. Nos dias que se seguiram, «com os nervos, a menina chegava a vomitar sangue».


Lucília não sabe o que, de facto, os olhinhos da neta terão presenciado no dia da morte da mãe. Provado ficou que o Paulo levou Carla até à pedreira e ali, na cegueira da noite, disparou quatro tiros. A mulher ainda terá tentado fugir da morte. Como os tiros não bastaram, seguiram-se golpes na cabeça, com um objecto contundente. Por fim, o empurrão, para o interior das águas da lagoa. Paulo regressou a casa, lavou-se, escondeu a t-shirt ensanguentada debaixo de uma telha e agiu com uma anormal serenidade. O tribunal destacou a «brutal violência» do crime, tal como a existência de uma «vontade criminosa muito intensa».


Com 66 anos, o que Lucília mais quer é dedicar o resto da vida a criar a neta. Um trajecto, sem mapa, feito de lágrimas engolidas. E. tem dias em que só queria ser personagem de um conto de fadas. Mas percebe que, tal como Hansel, ficou sem migalhas a marcarem o trajecto maternal. «Vó, ensina-me o caminho para o céu, quero ir ver a mamã».



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